terça-feira, 4 de novembro de 2014

Gislene e Francesco

 

          Gislene tinha de voltar logo pra casa. Seu filho havia amanhecido com febre. Sua irmã mais nova cuidava do menino. São ao todo sete irmãs, contando com Gislene. Todas viviam no mesmo apartamento no centro de São Paulo. Das sete, quatro já tinham filhos. No total viviam quinze pessoas no apê da Rua dos Guaianazes. Era um berrar e correr permanentes naquele pequeno espaço. O único homem era Lucas de sete anos, filho de Gislene. No mais eram outras catorze mulheres, entre adultas e crianças. 

          A avó resignava-se em ficar sentada o tempo todo em uma poltrona igualmente velha, segurando sempre um rádio antigo ligado na Rádio Capital AM. Não ousava se meter em nenhum assunto de suas meninas. Cada uma resolvia por si os seus homens, seus empregos e os destinos de suas crianças. Deixava que as filhas se esbofeteassem por um pedaço maior de bife ou pela televisão. Espera tranquilamente a hora em que uma das filhas coloca em suas mãos um prato de almoço ou jantar. Sempre guardam para ela um pedaço da mistura.

         As crianças raramente brigam por conta da mistura. Preferem comer bolachas recheadas e não ligam para comida. Elas também são livres para a escolha do seu cardápio. As mães consideram a refeição mais prática, rápida e barata. Naquela região da cidade existem inúmeras lojas de doces com grande variedade por preços módicos. Avisam uma só vez que o jantar está pronto, mas as crianças já se decidiram pelos doces. As mães sentem pena em privá-los das guloseimas. Quando meninas, mal sabiam o gosto de uma bolacha, de modo que consideram as crianças privilegiadas.

        Cada uma das adultas, exceto a avó, trabalha em bicos esporádicos. Mesmo que houvesse emprego daqueles com carteira assinada, não poderiam trabalhar todas ao mesmo tempo. Não haveria com quem deixar as crianças. Portanto, enquanto uma tem um emprego fixo, outra é diarista, outra é garçonete na madrugada, outra recebe seguro desemprego e outras produzem umas pulseirinhas em casa enquanto olham as crianças. Todas recebem algum programa social. O acúmulo desta salada econômica garante a comida com mistura, o aluguel, as bolachas e uma grana extra para gastarem no forró.

         Suélen, a caçula, pensa em ser diferente das irmãs. Tem dezessete anos e concluiu recentemente o ensino médio. Sonha em fazer faculdade de secretariado. Gislene tenta ajudar. Paga para a irmã olhar com cuidado o filho Lucas. Um cuidado especial. Entre todas as sete irmãs, existe uma afinidade específica entre Gislene e Suélen.

         Gislene ressente-se do seu destino. Seu filho não foi fruto de uma relação amorosa, tampouco prazerosa. Foi um acidente. Não que isso a impeça de amar ao menino, mas para ela é muito estranho perceber no rosto de Lucas a cara de um homem que não significou nada para ela. Nem amor, nem rancor, nem afeto, nem desejo. Nada. Já Suélen tem horror a homens. Diz em casa para que todas ouçam que nunca terá um filho. Também não lhe interessa as meninas. Simplesmente não da bola para o sexo. Tem outra expectativa: ser secretária executiva.

        Lucas tem febre e dor na nuca. Aguarda o retorno da mãe para tentar a sorte no Pronto Socorro.

        Gislene tem de voltar logo, mas o trabalho não é fácil. Procura concentrar-se em chupar o velho Francesco para terminar logo o serviço. Tenta não se incomodar com o odor azedo que sobe de suas virilhas. Acaricia sua pele murcha e emite sonidos de prazer para que o velho, por fim, despeje seu líquido cada vez mais raro e pague pelo serviço. Gislene não quer mal o velho, ao contrário. Agarra-se a ele com alguma dose de afeto. Não acredita mais no amor. Gislene pensou ter amado quando tinha catorze anos. Agora entende esse tal amor como coisa de menina. A realidade é outra. No mais, com Francesco ela não considera estar se prostituindo. Não há tantos conflitos pessoais. Ele é o único homem com quem faz programas. Finge ser sua amante e isso a conforta. Para Gislene, Francesco caiu do céu.

          Ele paga semanalmente. Nunca falha. Gislene visita seu apartamento na Bela Vista três vezes por semana. Ele recebe mensalmente uma aposentadoria razoável que é depositada da Itália diretamente para sua conta corrente. Ganha cinco mil e quinhentos reais. Gislene fica com mil e duzentos ao mês. Nada mal para o velho viúvo e solitário. 

          Francesco é tarado por Gislene. Adora passar o seu rosto gasto na pele lisa e cheia de sardas da jovem ruiva.  Pede sempre para que ela abra suas pernas e mostre seus pelos vermelhos libertos da gilete e da tesoura.  Seus seios são mínimos, porém firmes. Passa horas olhando e acariciando aquela mulher de vinte e nove anos. Quando não tem ereção ou quando Gislene está menstruada, sentam-se lado a lado e conversam sobre a vida. 

          O velho repete as histórias da sua infância órfã. Foi criado em um convento na Itália. Era a única criança que vivia no local. Conta sempre que tomava banho acompanhado das freiras que por vezes reuniam-se para tratar do garoto. Gostava dos pelos de Gislene porque em sua memória afetiva habitavam as inúmeras vaginas peludas e impossibilitadas de maiores cuidados das irmãs católicas.

         Quando completou dezesseis anos já era um homem. Se não o suficiente para cuidar-se sozinho, era homem formado fisicamente. A convivência no convento tornou-se traumática, mas não para Francesco, mas para as freiras que passavam muito tempo agitadas e estressadas. Por isso foi colocado em um navio rumo à Argentina. No entanto, foi obrigado a descer em Santos. Passou fome por anos até conseguir um emprego de garçom numa cantina na Mooca. Seguiu a vida até se casar com uma baiana que morrera faz cinco anos, deixando-o só. Não teve filhos. Não conhece os pais, nem tios, nem ninguém.

       Gislene suga com força. Olha fundo nos olhos de Francesco que por fim se entrega. Desfalece deitado no lado direito da cama, como de costume. Hoje ela não pode passar mais tempo na cama do homem, como faz normalmente. Pede trezentos reais ao velho, coloca na bolsa e corre em busca de seu filho.

       Chega ao prédio. Nem sequer lavou o rosto. Escuta os gracejos dos vizinhos nigerianos que passam o dia todo sentados na calçada jogando cartaz, bebendo cerveja e fumando maconha. Chegando ao sexto andar já pode ouvir o forró que grita alto no apartamento. Abre a porta. É impossível falar em voz baixa na sua casa. Só se fala berrando. Dia e noite os ruídos são os mesmos. O Forró, as crianças, a televisão, as irmãs histéricas. Chega à sala e a mãe permanece alheia a toda balbúrdia. Parece cochilar com o rádio ligado em seu colo.

         Nos braços de Suélen, Lucas parece estar delirando em febre. Gislene dá uma bronca na irmã:

- Menina, por que você não o levou para o hospital? 

- Eu não tenho dinheiro pra condução.

- Por que não pediu para as meninas?

- Elas disseram que eu só cuido do Lucas, então que eu pedisse dinheiro somente pra você.

       Gislene desceu o edifício e pegou um taxi. Sabia que o menino estava vivo porque seus braços queimavam, mas o Lucas não reagia a nada. Ao chegar ao Pronto Socorro viu que a fila era grande. Desesperada, ultrapassou a fila e começou a gritar pedindo ajuda. Outras mulheres tomaram a frente e protestaram:

- Hei boneca, você não vê que tem fila?

- Meu filho vai morrer.

- Aqui ta todo mundo esperando por mais de cinco horas, filhinha. Você vem aqui toda afetadinha e acha que tem privilégio.

- Meu filho não responde mais nada. Por favor.

          Ousou enfrentar a ira das outras flageladas e enquanto carregava Lucas em seus braços chutou a porta que divide a sala de espera e os consultórios invadindo o corredor. Entrou na primeira sala onde viu uma médica. Colocou Lucas sobre o leito do consultório.

- Pelo amor de Deus, salve meu filho. 

         Sacou os trezentos reais da bolsa e colocou na mesa da médica. A doutora segurou o menino, ouviu os batimentos cardíacos e levantou as pálpebras com o dedo. Devolveu o dinheiro para Gislene colocando-o na palma de sua mão e apertando firme. Chamou dois enfermeiros que conduziram o garoto para a emergência. Gislene quis acompanhar, mas foi impedida pelos enfermeiros. Quis permanecer no corredor interno do hospital, mas foi proibida pelos seguranças.

         Voltou à recepção do hospital para fazer o cadastro de entrada e aguardar noticias. Lágrimas escorriam pelo seu rosto. Enquanto procurava seus documentos foi atingida com um golpe na cabeça. Um tamanco pesado da mulher que reclamara o lugar na fila. Caiu no chão sangrando. Levou mais três chutes no estômago. Perdeu o fôlego e desmaiou.

          Levada à sala de sutura, um funcionário do hospital pediu que ela desse o telefone de um acompanhante para avisar o ocorrido. Sem poder pensar o porquê, forneceu o número de Francesco.

         Cansada, deprimida, ferida e preocupada, Gislene permaneceu inerte no leito. Estava em observação médica.   Não poderia adormecer. Olhava fixamente para o teto enquanto escutava os ruídos próprios de um hospital, como os gritos incessantes de bebês e médicos que repetiam exaustivamente os nomes dos pacientes que aguardam na sala de espera. De repente aparece sobre a sua visão o velho Francesco. 

         Ele não perguntou nada. Tampouco ela esforçou-se para explicar todo o ocorrido. Em poucos minutos uma ambulância levava mãe e filho para um hospital particular limpo e confortável.

        Enquanto esperavam pelo estado do menino, Gislene com um curativo na cabeça apanhou os trezentos reais na bolsa. Aquela altura o dinheiro a incomodava e envergonhava. Estendeu o braço e devolveu para Francesco. O velho tentou recusar, mas Gislene enfiou as cédulas no bolso da calça do homem. Ele aceitou e deu um meio sorriso.

        Naquele momento Gislene estava certa que chegara o mais próximo possível do amor. Nunca havia sentido gratidão na vida. Na verdade, nunca fizeram nada por ela para que pudesse agradecer, logo, aquilo era o sentimento mais acolhedor que já havia sentido. Lacrimejou, enxugou as lágrimas que pode, sugou o nariz e disse a Francesco:

- Você nunca mais tem de me pagar por nada.

        Francesco feliz respondeu falando baixinho:

- E você nunca mais vai ter que pedir.

          Segurou os ombros de Gislene com um misto de afeto e proteção. Ela sentou-se mais perto e gostou de sentir o cheiro de cigarro nas roupas gastas dele. Encostou sua cabeça no peito do velho. Não estavam mais sós.

5 comentários:

  1. Uma linda história de amor...

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  2. Vc bem q poderia continuar essa estória pq agora quero saber o q aconteceu com os dois... :/

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  3. Meu nome é Gislene kkkkkk adorei a estória, muito humana e verdadeira.

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