segunda-feira, 4 de agosto de 2014

O uso social dos estádios da Copa


A boa avaliação da Copa do Mundo realizada no Brasil que apresentou números surpreendentes se comparados com a angústia e pessimismo exagerados antes do evento, não pode prejudicar uma análise mais rigorosa do legado posterior à realização do Mundial.

O futebol sempre foi um tema que unificou os interesses da população. Uma experiência de cumplicidade que permitia ao juiz e ao gari conversarem horas à fio sobre escalação, comportamento tático e estratégia no jogo de bola.

Com a ocasião da Copa do Mundo, a participação do Estado com investimentos públicos para a realização dos jogos e a prometida indução do desenvolvimento econômico a partir do investimento em infra-estrutura e estádios de futebol, fez com que questões como Gestão Pública, Desenvolvimento Econômico, Distribuição e Geração de Renda, também se tornassem "assunto de boteco".

A mídia esportiva passou os últimos anos tratando estes assuntos tão delicados com o mesmo rigor que analisam os jogos de futebol. Ou seja, ao sabor da intuição e buscando a polêmica fácil. Sem a atenção e a paciência que estes temas merecem.

A popularização dos temas relativos à gestão pública não é ruim. Na verdade é uma oportunidade muito importante para amadurecer a relação entre os indivíduos e as instituições, mas também exige respostas do poder público e uma comunicação com a população que vá além das peças publicitárias. 

Estádios foram construídos. Receberam investimento e financiamento públicos. Os estádios do Internacional, do Atlético Paranaense e do Corinthians foram os únicos estádios privados, mas que receberam, em maior ou em menor nível, financiamento público em suas obras.

Os demais estádios são administrados por consórcios privados. Alguns deles em locais com pouca tradição de clubes e campeonatos de futebol.

Na Copa do Mundo observou-se tristemente que a população pobre praticamente não conseguiu acesso aos jogos de futebol. Quem via a Copa pela televisão nos quatro campos do mundo, poderia concluir que no Brasil não havia negros. 

Mesmo com o fim da Copa, o Apartheid nos estádios permanece. Os assentos posicionados ao meio do campo estão quase sempre vazios. Ali os ingressos são caríssimos, quando não reservados para regalos institucionais ou camarotes. Quem consegue pagar para entrar nos estádios fica quase sempre atrás do gol, tarefa que não é tão difícil para os torcedores apaixonados. Porém, o velho torcedor que pagava pouco e não se importava em assistir as partidas de pé nas gerais, esse não existe mais. Foram varridos.
 
Os estádios da Copa são monumentos lindíssimos. A Arena Corinthians em Itaquera está no coração da periferia da Zona Leste. É inconcebível que a população do bairro só tenha a oportunidade de apreciar esta obra da janela do trem na volta do trabalho.

O uso social dos novos estádios pode cumprir um papel de disseminação da justiça social e dar uma resposta clara por parte do governo quanto ao legado da Copa do Mundo.

As novas arenas são construções gigantescas que em sua maioria ficam ociosas a maior parte do tempo.

Quando o antropólogo Darcy Ribeiro planejou o Sambódromo da Avenida Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, previu o uso das instalações durante o resto do ano para um CIEP, uma escola de tempo integral que é o projeto mais bem sucedido em termos de educação na história do Brasil.

Os estádios da Copa, sobretudo aqueles nas regiões onde não existe a tradição de grandes campeonatos ao longo do ano, poderiam oferecer parte de seus espaços físicos para a prestação de serviços públicos de saúde, educação, cultura, justiça, etc.

Para além da efetividade dos serviços públicos que podem ser ofertados a população, sem comprometer a organização de jogos de futebol naqueles espaços, cumpre-se um significado importante. Uma resposta à população. Isso não pode ser algo menos importante.

No mais, os clubes de futebol podem cumprir um papel muito maior.

A resposta de mau gosto de membros do Estado de Israel aos protestos da diplomacia brasileira com relação ao massacre contra a população da Palestina nos dá pistas importantes de como o futebol brasileiro empresta sua importância na maneira como o Brasil é visto e encarado. Quando israelenses dizem que "massacre foi o sete a um", numa comparação torpe entre um jogo de futebol e ataques que vitimam centenas de milhares de pessoas, podemos ter uma idéia da importância do nosso futebol como patrimônio cultural, social e político do povo brasileiro.

A resposta do Estado brasileiro foi coerente e de importância histórica. 

Mas voltando ao nosso futebol, o Brasil precisa também passar uma mensagem nítida para a população do alcance social do futebol.

Hoje, em sua maioria, os grandes clubes estão endividados, com péssima situação financeira. O maior credor destas instituições é o governo, já que a maior parte das dívidas dos times grandes é em tributos e contribuições.

Do jeito que estão, os clubes são alvos fáceis para oportunistas e inescrupulosos. Os clubes brasileiros não são empresas. Nem poderiam ser. São representações importantes da nossa sociedade. Cada clube possui um discurso diferente e até mesmo uma espécie de mito fundador. Porém todos eles, ao seu modo são fragmentos que completam as diferentes expressões da nossa cultura.
     
Não haveria problema se o governo resgatasse os clubes financeiramente e os livrasse das máfias que se instalaram, exigindo responsabilidade financeira e fiscal daqui por diante.

Porém, o mais importante seria a contrapartida social que estes clubes podem realizar. Os times de futebol tem um potencial imenso de comunicação com a sociedade brasileira. Poderiam se converter em prestadores de serviços sociais nas comunidades. Apoiando a inclusão através da educação e do esporte. Hoje, os governos em suas diferentes esferas já divide estas tarefas com o terceiro setor. Os grandes clubes possuem estrutura para fazerem mais. Seria uma oportunidade para resgatar os seus propósitos.

Também, seria possível apoiar as categorias de base, para que o Brasil volte a revelar grandes jogadores. Mas ao invés de os nossos jovens serem "contrabandeados" para o exterior, muitas vezes por empresários oportunistas, poderiam ser incluídos através da educação.

Não seria sensacional que os grandes clubes brasileiros tivessem suas escolas e até mesmo suas universidades, apoiando seus atletas e sua comunidade de torcedores?

Faz-se necessária uma urgente Política Nacional para o Futebol, que definitivamente coloque este esporte como um patrimônio histórico, social e cultural do povo brasileiro.
    
O futebol atende a um propósito muito maior do que o jogo jogado dentro do campo. É uma janela por onde boa parte da sociedade enxerga a vida. Interpreta as relações sociais e a vida cotidiana.

Por meio do futebol, torcendo por seu time de coração no estádio, muitos brasileiros aprendem a se expressar. É a porta de entrada para a vida social e política para além de suas relações privadas. O futebol é essencialmente uma experiência pública.

Resgatar o nosso futebol é resgatar em parte a fé nas nossas instituições. Ter roubada a experiência de torcer por seu time de coração é aumentar a injustiça social. É aumentar a percepção de exclusão e violência.

E ao contrário do que se pode imaginar, não é uma atitude inteligente do ponto de vista econômico. Afastar o torcedor é virar as costas para o consumidor. É deixar de olhar para o futuro em troca da exploração fácil do lucro instantâneo. É olhar para poucos e fechar os olhos para uma grande massa de brasileiros.

Garantir o uso social dos estádios é dar uma resposta muito importante à sociedade brasileira. É incluir. É dar demonstração de bom uso dos recursos públicos. É permitir à população admirar de verdade aquelas obras gigantescas e tão bonitas. Monumentos que devem ser coletivos, não signos da exclusão e espaços de privilegio.

Nenhum comentário:

Postar um comentário