O jogador de futebol deve estar relegado a um lugar social de submissão. Ele está condenado, para sempre, a ser um personagem folclórico. Esta forma de preconceito manifesta o desejo de reproduzir para a sociedade uma hierarquia mais ampla que permearia todas as esferas da vida social.
Embora os grandes futebolistas tenham uma importância destacada na nossa sociedade, cada vez que um atleta se arrisca em expressar sua opinião sobre algum tema que supere as quatro linhas do gramado é prontamente desqualificado e muitas vezes punido pelos órgãos dirigentes do futebol.
Mesmo quando um jogador de futebol conclui sua carreira com sucesso, salvando raríssimas exceções, exige-se que ele volte a ocupar um lugar subalterno na sociedade. O ex-jogador é chamado apenas para entrevistas que relembram seus momentos de glória e é desejável que ele fale principalmente de seus episódios engraçados e pitorescos, reforçando sua imagem de ignorante e boçal.
Nem mesmo Pelé, maior jogador de todos os tempos, pode expressar tranquilamente seus pensamentos sem que seja prontamente desqualificado por um jornalista qualquer.
Boa parte destes atletas incorpora este papel desejável para a elite. Sequer se dá conta que é conveniente aos poderosos que ele enriqueça. O jogador mergulha num mundo de fantasias, contentando-se com a satisfação de seus projetos individuais e renunciando ao seu potencial de comunicação com a sociedade.
O jogador Sócrates, sempre rebelde, contrariou e segue contrariando este “lugar” desejado para os ídolos da bola. O status de doutor não foi adquirido com um simples apelido nos campos de futebol. Poderia até ser, dada sua genialidade, mas Sócrates se fez doutor através de seu mérito e de sua capacidade como homem.
Ao contrário dos milionariozinhos ruins de bola de hoje em dia, absolutamente indiferentes com a vida nacional (sequer se importam com o sentimento da torcida), Sócrates foi o grande mentor da Democracia Corinthiana que não somente transformou as práticas administrativas e hierárquicas dentro do Corinthians, mas foi um movimento que difundiu seus valores, a partir do “time do povo”, para toda a sociedade brasileira que vivia sob uma ditadura decadente, mas que ainda tentava manter-se e impedir o povo brasileiro de fazer suas escolhas.
Sócrates foi figura muito presente nas manifestações pelas eleições diretas para presidente do Brasil e nunca escondeu sua visão política de esquerda. Tampouco se fez valer de sua condição de ídolo para injuriar seus inimigos políticos, mas manteve a coerência e foi sincero consigo mesmo defendendo sempre seus pontos de vista como socialista.
Agora, Sócrates passa pelo momento mais difícil de sua vida. Luta para recuperar sua saúde.
Mas alguns setores da imprensa mostraram claramente sua porção abutre e cercaram Sócrates para demonstrar cinicamente a sua “preocupação” com o alcoolismo do doutor.
A cada entrevista que Sócrates gentilmente concede, pede-se que ele se assuma como alcoólatra. Que ele conte para o público como foram ruins os seus anos entregues a bebida.
Esta é uma tentativa de desqualificar a biografia de Sócrates. É uma maneira de dizer que tudo o que ele disse e defendeu durante estes anos todos foram meros delírios de um bêbado.
O alcoolismo é muito mais do que um vício, é uma doença reconhecida pela organização mundial da saúde. Como o uso de álcool afeta o comportamento do indivíduo, os dependentes, muitas vezes, não são respeitados como os portadores de outras doenças.
Mas aqueles que estudaram alguma coisa sobre o alcoolismo sabem que a droga é incapaz de modificar o caráter do indivíduo. E quanto ao caráter, Sócrates ganha de goleada da imprensa podre e sensacionalista que tem como prática tirar proveito dos dramas individuais para difundir seus valores conservadores na sociedade.
O maior desafio de Sócrates não será vencer o alcoolismo. Ele terá de enfrentar também os estigmas conferidos ao jogador de futebol aposentado e também o arquétipo desejável para os homens e mulheres que se mantém na esquerda depois da “impulsividade juvenil”.
Pois é assim que as coisas são. Aos jovens é permitido o “delírio” esquerdista. Depois de velho – porque todos deveriam envelhecer rapidamente como os recalcados – o sujeito deve tomar juízo e se assumir como conservador.
Os velhos que se mantém na esquerda, se forem inimigos diretos dos interesses da classe dominante devem ser destruídos. Caso não disputem cargos de decisão, passam a ser tratados como ingênuos, bobos, malucos ou bêbados. Isto fica claro no caso do Doutor Sócrates.
Não é novidade que alguns bêbados enxerguem o mundo com mais clareza do que religiosos, políticos, filósofos e empresários. Mas gostaria de manifestar meu desejo de 24 horas de serenidade para um dos maiores ídolos da minha vida. Que o Doutor Sócrates recupere sua saúde e permaneça incomodando essa gente careta, estúpida e conservadora.